domingo, 29 de julho de 2007

Sete

Eles não saberiam dizer quanto tempo o beijo durou, mas jamais esqueceram o susto ao ouvirem um estrondo vindo da porta velha da sala. Alguém tentava abri-la e somente conseguiu no segundo empurrão.

- Aconteceu algo aqui? – perguntou o pai, entrando rápido na sala.
O intervalo entre o primeiro e o segundo empurrões na porta serviu para eles afastarem-se. Seus olhares porém, diziam que algo mais acontecera e isso não passou despercebido ao velho pai.
Ana era rápida e dissimulou:
- Contei ao Ivan sobre o caderno – disse, olhando-o nos olhos.
- Bom, melhor assim. Apronte-se rapaz, faremos uma pequena viagem!
- Como? – Ivan olhou para o pai de Ana sem nada entender – Pode me chamar de Carlos, já passou da hora de nos apresentarmos.
- Mas pai, ele ia me explicar o que aconteceu! – disse Ana aflita.
- Eu é que terei que explicar muitas coisas a ele. Apronte-se. – disse olhando de novo para Ivan. – Meu amigo Suares chegará em poucos minutos.
Notando que os jovens ficaram olhando estupefatos, ele chegou mais perto e, abaixando o tom de voz, começou a contar-lhes algo que parecia ser um grande segredo:
- Vou lhes dizer algo sem rodeios, uma vez que a circunstância me impõe isso:
- Rapaz, sua vida corre grande perigo. E é claro que, sendo assim, a sua presença nessa casa nos deixa à mercê de acontecimentos que eu gostaria de evitar. Levarei você para um lugar seguro, mas para isso é preciso que sejamos rápidos.
Nesse mesmo instante, ouviram o barulho de um carro estacionando. Duas buzinadas avisaram sua chegada. O pai abraçou a filha, pediu para que ela ficasse atenta e saiu. Ivan, por sua vez, olhou-a ternamente e, como não tinha alternativa, seguiu o senhor Carlos. Ela acompanhou-o de longe: ele entrou em seu quarto, pegou sua mochila e foi para o carro. – tudo isso em poucos rapidamente. O barulho da porta se fechando foi ouvido juntamente com o motor sendo acelerado. Minutos depois, a poeira mostrava um percurso em direção ao meio do deserto.
Ana não se lembra de quanto tempo ficou parada naquela porta e também não sabe dizer se alguma outra perda havia lhe causado tamanha dor ao coração. Ficou com o olhar perdido durante muito, mas muito tempo e, pela primeira vez, desde a morte da mãe, chorou.
Ela não falou com ninguém naquele dia. O bar ficou com suas portas fechadas, obrigando viajantes a caminharem mais à procura de comida e abrigo. E ela pensava se teria valido a pena sentir o que sentiu...

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Seis

A garota puxou a cadeira e se sentou perto dele.

- Você está bem? – perguntou muito preocupada.
- Está pálido. O que aconteceu? – falou com um tom carinhoso.
- Meu tio passou por aqui! Sei que ele fez isso! Estou perto da solução para os meus problemas! – disse o rapaz com os olhos fixos no deserto sem prestar atenção no que a garota havia dito.
- Olhe para mim! Conte-me o que aconteceu! – disse a garota envolvendo o rosto do rapaz com as mãos.
O toque de Ana fez Ivan vibrar por dentro. Ele voltou o olhar para ela. Jamais havia contemplado mulher mais bela. O Sol entrava pela janela e fazia seus cabelos longos e escuros brilharem, seus olhos eram de um castanho cor de mel e seu rosto levemente delineado pela luz o fazia esquecer de tudo que havia ao seu redor.
A pergunta dela ecoava em sua mente: O que aconteceu?

Ivan havia abaixado os olhos e começava a lembrar do dia que marcou a sua vida: ele achou o baú debaixo do assoalho oco daquela velha casa. Começou a folhear as anotações e quanto mais o fazia, mais admirado e assustado ficava.
- Todo esse texto em código! – fitava os documentos sem entender nada.
Ele sempre teve uma atração pelo mistério e encontrar um baú cheio de folhas e cadernos criptografados na casa de sua avó era uma surpresa e tanto.
Lembrou de sua dedicação em traduzir parte dos textos – levara meses nessa empreitada – e do grande susto que tomou conta de sua mãe quando disse que precisaria viajar para fora do país.
Lembrava de tudo isso e sabia que Ana merecia uma resposta, ainda mais pelo fato dela ser parte do mistério.

Ele respirou fundo, foi levantando a cabeça, disposto a contar tudo. Com a voz embargada, ensaiava dizer a primeira frase quando seus olhares se cruzaram novamente. Ele pousou sua mão nas mãos dela, apertando-as. Com a outra mão aproximou o seu rosto, fazendo carinho em seus cabelos. Seus lábios se tocaram com delicadeza e depois mais e mais fortemente, mostrando a paixão que, inesperadamente e contrária a toda a lógica, já os envolvia.

Iria contar tudo para ela sim, mas de outra maneira...

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Terroristas

Um grupo de terroristas de Londres está em São Paulo. Cuidado! A Secretaria de Segurança Pública deve se pronunciar logo mais e alertar a população quanto ao fato. As maiores vítimas até agora têm sido as crianças e os adolescentes, mas acredita-se que a quadrilha não tardará a se manifestar prejudicando adultos também.

Vejam os relatos:
- Maria Xana conta que estava com os filhos e seus amiguinhos – total de 6 crianças – na fila do cinema, quando um rapaz alto com óculos escuros parou atrás deles e começou a dizer disfarçadamente, mas de maneira que pudessem ouvir: “O Shrek vai ter três filhos com a Fionna, o novo rei será o Arthur e o pântano voltará a ser habitado”. Maria Xana disse que as crianças começaram a chorar e ela teve que voltar para casa com elas, sendo que a menor teve uma “diarréia emocional” e passou a noite hospitalizada;


- Uma grande fila esperava a vez para entrar na sala do filme do Harry Potter quando uma garota aproximou-se e em alta voz começou a contar como seria a morte de Sirius Black. As pessoas da fila tampavam os ouvidos e fugiam desesperadas. Outras ainda se jogavam no chão e contorciam-se freneticamente. O horror se espalhou e a projeção do filme atrasou 20 minutos, alterando a rotina de centenas de pessoas. Ainda dentro da sala de exibição, as pessoas que não tinham ouvido a revelação da garota, gritavam para que ninguém comentasse o ocorrido. O espírito de solidariedade se fez e os prejudicados ficaram em silêncio. As lágrimas em seus olhos denotavam a sua tristeza...


- Algumas tentativas de ataque foram feitas no Cine Bombril, mas os seguranças agiram rapidamente. E na livraria Cultura outro ataque se deu perto da “estante dos livros mais vendidos”, mas foram evitadas maiores vítimas, pois quem estava por perto já havia lido aquele livro e até discutiram com o terrorista sobre a impropriedade do que ele estaria veiculando.
Esperamos que tais fatos sejam esclarecidos e, enquanto o mesmo não acontece, a sugestão de vários policiais é que se use fone de ouvidos nas filas de cinema. O medo maior é que os terroristas comecem a utilizar meios visuais, como cartazes ou até cartas e e-mails para disseminar o pavor.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Cinco


O rapaz acordou com o Sol iluminando o quarto. Dormira demais. Saiu do quarto com a intenção de banhar o rosto e seguir viagem. Na porta de entrada encontrou a garota com seus afazeres. Ela o cumprimentou meio tímida, mas, investida de uma vontade nova, disse ao rapaz:
- Eu sabia desde o início que você era uma boa pessoa!
- Como? – perguntou ele sonolento.
- Você é o rapaz do caderno! – disse a moça sorrindo.
- Eu? O rapaz do caderno? – disse ele sem entender nada – Que caderno? – perguntou.
Aquele que você trazia no peito ao dormir. Meu pai entrou no quarto para te acordar e viu o caderno. Ele voltou sorridente e me falou que você é sobrinho de um velho amigo e, portanto, é uma boa pessoa.
- Seu pai conhece aquele caderno? – perguntou espantado.
- Sim! – respondeu a moça.
- Tenho que falar com seu pai! Onde ele está? – perguntou o rapaz, com o coração aos saltos.
- Ele saiu e levou o seu caderno. Disse que voltaria em algumas horas.
- Eu não posso perder aquele caderno! Tenho que ir atrás dele! – disse o rapaz desesperado.
- Acalme-se, por favor!
- Como vou me acalmar? Eu dormi aqui e levaram-me algo muito importante! Eu preciso daquele caderno! – o tom era ríspido.
Foi aí então que a garota, para tentar acalmá-lo, segurou suas mãos, olhou-o nos olhos e disse que lhe explicaria tudo.
Não precisou falar nada. Os olhos fixaram-se e o tempo parou para os dois. E, aquele caderno – um mistério de mais de trinta anos em sua família e que havia mudado a sua vida – deu lugar a um momento que parecia ser esperado há muito, sem saber o quanto.
O rapaz aproximou-se mais e ia beijá-la, quando ela disse:
- Ivan, ainda não é a hora!
Ele afastou-se assustado, pois ninguém naquela viagem sabia seu nome verdadeiro. Com muito medo ele arriscou:
- Ana?
Ela assentiu com a cabeça.
Naquele instante sentiu uma vertigem que quase o levou ao chão. Sentou-se. Tinha que tentar raciocinar...

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Quatro

O dia estava fechado para aquela época do ano. O seu coração acompanhava o cinza do céu – o rapaz estava triste. Naquele momento o vento roçava-lhe os cabelos. Eles eram compridos e dava-lhe prazer senti-los esvoaçando. O barulho dos pneus em contato com o asfalto ia aumentando – é claro que ele não deveria correr tanto, não naquele dia.

E tudo aconteceu muito rápido: o carro usou a pista errada e ele, ao tentar manobrar a bicicleta, não conseguiu manter-se sobre ela. O rapaz voou para a lateral da pista. A falta de orientação espacial enquanto rodopiava pelo chão deu lugar a um baque surdo em sua cabeça. Havia colidido com um muro próximo. O pensamento de que estava sem capacete veio e, desmaiou.

Acordou assustado. Custara a dormir pensando na garota e, ao adormecer, teve novamente aquele sonho. Desde que largara tudo em sua vida sonhara repetidas vezes com um acidente de bicicleta. Seria possível que mesmo no meio do deserto aquela cena iria lhe perseguir? Várias vezes havia imaginado qual seria o simbolismo daquele sonho e chegara à conclusão que era a representação de um acidente psíquico. Sim, algo muito grave que acontece com todos os jovens. Um acidente que é a grande colisão do jovem contra o “muro da realidade”. Não dá para desviar, pois é contra a própria vida esse choque. O jovem sem dúvida sai machucado deste acidente e precisa de muitos lhe dando a mão.

Mas, nesse momento o rapaz estava no meio do deserto e as poucas pessoas que o rodeavam talvez não pudessem lhe ajudar. Como sempre, depois desse sonho, seu coração se descompassava e a única coisa que pode lembrar foi o caderno com os códigos. Tateou os objetos ao seu redor alcançando a lanterna. Acendeu-a e pegou o caderno. Logo na primeira página viu a mensagem que lhe custara alguns dias para decifrar:

“Querido sobrinho. O que escrevo a seguir ninguém pode saber. Um senhor você deve procurar. Quando? Assim que o seu coração lhe pedir. Como? Onde? Confio em sua inteligência. Eu te conheci pequenino e logo fomos separados, mas sei que essa busca você pode realizar. Continue a leitura desses códigos e o mistério se revelará!”

E era devido a esse livro que ele ali estava. Realmente não sabia o que lhe aguardava, pois cada página somente podia ser decifrada após um percurso da viagem. O livro dizia exatamente onde estaria a próxima dica e o rapaz adequava o texto cifrado à realidade que o cercava. Com isso tinha informações valiosas que lhe ajudavam a seguir adiante. A idéia era encontrar este tal “senhor”que, segundo o caderno de seu tio, tanto iria lhe ajudar.

O cansaço foi mais forte. Adormeceu com o caderno no colo. A lanterna caiu e providencialmente se desligou ao chocar-se com o chão de terra batida. Economizaria preciosa energia elétrica...

sábado, 7 de julho de 2007

Três

A garota estava lá dentro! Não parou de pensar nela desde que a viu. Terminara o alimento e, ansioso, imaginava como faria para vê-la novamente. Neste ínterim, o pai dela voltou e, mais simpático, iniciou uma conversa.
- Você está nesse deserto pela primeira vez, não é?
- Sim, dá para notar? – o rapaz indagou.
- Sim. Percebe-se que você está só de passagem. Todos os dias vejo pessoas que vivem nessa aridez. Seu olhar é mais profundo, já sabem de alguns perigos que encontrarão pela frente. Você, por sua vez, olha o deserto como uma grande diversão. Com o tempo, vai perceber que ele é mais do que isso... – disse sem concluir a frase, olhando o lindo pôr do Sol.
O rapaz também olhou para lá: o Sol já podia ser vislumbrado com uma cor diferente no horizonte –“espalhamento dos tons azulados e maior incidência dos tons alaranjados” – pensou lembrando das aulas de Física – a noite não tardaria em vir.

De repente um barulho na estrada: uma moto passou pela estrada em alta velocidade. O rapaz sentiu seu coração vibrar. Desde que entrou no deserto, essa era a primeira moto que via. Sentiu um ímpeto de continuar a viagem, mas antes que expressar algo, o pai da garota falou:
- Esse aí deve conhecer muito a região, caso contrário, amanhã teremos notícias...
- Como? – indagou o rapaz preocupado.
- Ninguém atravessa essa parte do deserto à noite sem ter plena certeza de que sua máquina não irá falhar e além disso, é necessário uma boa dose de loucura para fazer isso, pois não se sabe o que irá encontrar pelo caminho.

O rapaz ficara calado e somente escutava. O senhor Júlio – esse era o nome dele – aproveitou o silêncio e lhe informou:
- Existe uma espécie de ratos muito perigosa nessa região. Eles saem à noite para se alimentar. Imagine então um bicho que há milênios vive sem ver o Sol e no frio. Eles tornaram-se muito sensíveis à luz e ao calor, ou seja, acham-nos com muita facilidade, ou seja, ninguém pode parar à noite pois corre o risco de ser atacado. Sei o que você vai me dizer: Atacado por ratos? Sim, este tipo de rato não conhece predadores, eles o são! As aves de rapina somente caçam de dia. Aqueles ratos lá – e apontava para o meio do deserto – atacam qualquer coisa que tenha calor no corpo. Várias histórias de turistas que nunca mais voltaram são contadas a nós.

O olhar impressionado do rapaz deixou o senhor satisfeito. Ele gostava quando alguém lhe dava atenção e o levava a sério.
- O que eu faço então? – perguntou o rapaz.
- Para lá você não deve ir! – afirmou o senhor.
- Devo voltar?
E sem nem saber o porquê, o senhor olhou-o nos olhos e disse:
- Durma aqui essa noite. Amanhã você segue viagem.
Dormir ali, sob o mesmo teto que a garota. O rapaz chegava a pensar que ela sequer existia, uma vez que era mais viva em seus pensamentos do que na realidade empoeirada em que se encontravam – os olhos dele brilhavam – teria a chance de falar-lhe.
- Normalmente eu não faço isso! – disse o senhor Júlio – mas confio em você. Apronte suas coisas e tome um banho. Arrumarei esse quarto ao lado da casa. Lá não tem banheiro, mas sei que você se vira. Deixarei um lanche pronto e cobertores também. Boa noite! – disse entrando sem olhar para trás.

O rapaz arrumou tudo dentro do quarto, guardou a moto e tomou banho. Deitou-se na cama dura e um pouco mofada. Mesmo assim, sentiu-se extremamente confortável e feliz. A arrumação do quarto dava a impressão de ter um toque feminino. Ele ia cobrir-se quando lembrou de ter esquecido seu estojo no banheiro. Lá está meu dinheiro! – pensou. Deu um pulo da cama e voltou rapidamente para pegá-lo. Ao abrir a porta ele a viu. Novamente seus olhares se encontraram. A sensação de que tudo em volta se apagava, o bater descompassado do coração, o querer saber quem era ela, tudo e muito mais veio-lhe como um turbilhão.
- Meu nome é... – ele tentou falar.
A garota do deserto entrara rapidamente no banheiro, mas não deixou de lhe endereçar um olhar inesquecível, que o aqueceu e lhe deu a certeza da correspondência de sentimentos.

O silêncio do outro lado da porta denotava que ela não sabia o que fazer – e esperava. Mas ele, reuniu forças para não chamá-la. Ficou quieto, parecia ouvi-la respirando. Pensou em bater de leve na porta, mas não o fez. Saiu em silêncio, entrou em seu quarto e, ainda que o cansaço lhe constrangesse ao sono, só conseguiu dormir várias horas depois.

Ele vai ao banheiro e esquece algo. Quando volta para pegar ele a encontra e seus olhares se cruzam e eles ficam assim um tempo. Ela saiu rápido e entra no banheiro. Ele ouve a água caindo no chão e ouve o seu escoar. Seus sonhos escoavam

Eu estou olhando para você e enxergo não um viajante. Você está viajante, mas não é um viajante. Sinto que você deixou algo para trás e está querendo resolver algo em você. Bom, o velho vê viajantes todos os dias, deve saber quais são e quais não são viajantes profissonais.